Exemplo
Amor para se perder nas contas
Aos 67 anos, Maria Regina Duarte é a mãe de uma família que divide o pouco que tem na Vila do Pântano; além das filhas, 18 netos também estão sob os cuidados da matriarca
Paulo Rossi -
Essa história poderia começar com aquele velho clichê sobre coração de mãe. Você vai entender o porquê, algumas linhas abaixo. Porém, a melhor forma de apresentar a personagem principal dessa reportagem é um episódio simples durante nossa conversa com a família Duarte, na Travessa do Pântano, início da rua General Osório, em Pelotas. Enquanto contava as agruras e alegrias de viver com outras 23 pessoas, entre filhas e netos, Dona Maria ouviu um choro baixinho, ao fundo. Sem pestanejar, parou a entrevista e avisou: "Veridiana, o Luís Artur se machucou lá no pátio!". Dito e feito. Somente pelo tom do que ouviu, a avó sabia qual das crianças precisava de colo.
Aos 67 anos, baixinha, de passos lentos e voz suave, Maria Regina Duarte não aparenta a força que tem. Com todas as limitações que a falta de dinheiro sempre lhe impôs, criou as filhas Tânia, Márcia e Sandra ao seu lado. E com o passar dos anos, a família só fez aumentar. E bastante. Um desafio para a senhora que enfrenta o peso da idade somado a problemas de saúde que, se lhe tiram parte da mobilidade, não afetam o otimismo com que encara a vida. Mesmo nos momentos mais duros.
A pior das dificuldades Maria enfrentou em 2013. Após a morte da filha Tânia, vítima de câncer, se viu como a única referência para as sete crianças que acabavam de perder a mãe. Sete meninas, à época com idades entre quatro e 12 anos, que viviam em uma pequena peça na qual não tinham sequer camas suficientes para dormir. "De avó, passei a ser a mãe, a cuidar de todas. E segue assim até hoje, sempre aqui comigo", diz.
Diante desse contexto e sem lugar adequado para Thaís, Taciana, Luana, Mariana, Juliana, Tissiane e Lidiane, a avó precisou se dedicar integralmente à educação e a dar condições mais dignas, mesmo com pouquíssimos recursos. Foi quando, com a ajuda da assistente social Josana Pires, encontrou apoio de um projeto social para dar à pequena peça das crianças ares de lar. Através de uma parceria entre o Núcleo de Extensão em Habitat Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e a Sociedade Espírita Assistencial Dona Conceição, um desejo escrito por Tânia e guardado em um projeto chamado Livro dos Sonhos se transformou em realidade.
A partir das linhas da filha, até então esquecidas naquele livro, Dona Maria viu sair do papel a Casa das Sete Meninas. Da mesma forma como abraçou as gurias, foi abraçada pela equipe do projeto e, sobretudo, pela comunidade do Pântano. Os braços voluntários e o material alternativo sugerido pelo arquiteto e urbanista Cassius Baumgarten fizeram surgir uma casa. Paletes, caixas de leite, garrafas PET e pneus converteram o antigo espaço apertado em uma moradia com três peças, uma cama para cada criança e banheiro. Já faz dois anos que tudo ficou pronto, mas até hoje quando conta Dona Maria se emociona ao lembrar o brilho que viu nos olhos das netas, agora filhas.
Sempre dá para acolher
As sete meninas são uma parte dessa enorme família que, embora a matriarca reconheça a todos de longe só por um choro ou gargalhada, às vezes até ela perde as contas. "São 16 crianças. Não, são 18. Quando tenho que contar assim rápido às vezes me atrapalho", brinca Maria.
Além das netas que viraram filhas, vivem desde sempre no mesmo local a primogênita Sandra, 34, com seis dos seus sete filhos (Graziela, Alessandra, Emerson, Everson, Felipe e Rayan) e Márcia, 24, com três filhos (Rafael, Natasha e Vitor), além de Brenda, 14, neta adotada por Maria como filha. Ela é filha de Ana, que não vive com a família Duarte na Travessa do Pântano.
Achou bastante? Para Dona Maria, é pouco. "Onde comem dois, comem três, quatro, cinco. Se eu pudesse teria uma família ainda maior. Adotaria todas as crianças que vejo sem um lar", afirma. E foi graças a esse pensamento da grande mãe do bairro que Veridiana, 24, recebeu uma chance de recomeçar uma vida em família. Grávida de seis meses de Luís Artur - aquele do começo da matéria, já com quatro anos e que basta um choro para a avó identificar - e tendo que cuidar da pequena Isadora com apenas dois anos, a jovem vizinha dos Duarte perdeu a mãe. Dona Maria Regina não teve dúvidas: "Chamei ela para vir morar com a gente, adotei. A mãe era minha comadre, uma grande amiga. E hoje a Veridiana é minha filha tanto quanto as outras", conta.
Uma mãe de muitos sonhos
Enquanto conta baixinho suas histórias rodeada pelas filhas e netos, Maria não precisa pedir silêncio, como seria comum em uma casa cheia de crianças. Mesmo os menores param e ouvem, ainda que talvez tenham pouca noção do sacrifício da avó para manter todos unidos, debaixo de um teto e com comida na mesa. Essa educação que ela e as filhas conseguem dar a todas as crianças é o que mais a orgulha.
"Estão todos estudando e são ótimos alunos. Às vezes fazem arte, o que é normal. Mas a creche e a escola nos ajudam muito e acompanhamos de perto", conta Sandra, que junto com Veridiana ajuda a dar conta dos cuidados tanto com a gurizada quanto com a saúde de Dona Maria Regina.
O assunto sobre o desenvolvimento dos netos e o carinho recebido faz com que a avó respire fundo ao ser perguntada sobre o que sonha para a vida de cada uma daquelas crianças que nela encontram referência. Por alguns segundos, baixa a cabeça e parece enxergar tudo o que já superou, inclusive uma cirurgia para tratar de um câncer há dois anos. E diz, olhando para o bebê Vitor, filho de Márcia com apenas dois meses e mais novo da turma: "Tudo que peço é que estudem para ter oportunidades na vida. Quero ter saúde para enxergar todos eles se transformando em pessoas de bem. É disso que preciso enquanto estiver aqui na Terra. E de um bom almoço no domingo de Dia das Mães, com todo mundo do meu lado", conclui, com um sorriso largo.
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